segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Complexo de Vira-Lata

É o texto original de Nelson Rodrigues publicado originalmente na revista Manchete em 31/05/1958, após o Brasil ter perdido a final da Copa do Mundo de 1950 para o Uruguai (em pleno Maracanã) e antes do Brasil ter sido campeão da Copa do Mundo de 1958 na Suécia.
"Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!". E, aqui,eu pergunto: – não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
 Eis a verdade, amigos: – desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio* arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: – "extraiu" de nós o título como se fosse um dente.

 E, hoje, se negamos o escretede 58, não tenhamos dúvidas: – é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: – o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: – se o Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

 Mas vejamos: – o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a verdade: – eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: – sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: -não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

 A pura, a santa verdade é a seguinte: – qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: – temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: – "O que vem a ser isso?". Eu explico.

Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: – e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
 Eu vos digo: – o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: – para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão."
Nada mais atual, como povo, como parte integrante de um grupo, como indíviduo. Parece que é um complexo que ainda nos atormenta, parte integrante do que somos, sempre olhando o mundo com uma ótica reduzida, simplória, onde mais reduzidos somos nós a piores nisto, naquilo, nada no mundo é tão ruim ou pior do que nós, da mesma maneira, parece que a única maneira de combatermos tal complexo é pensarmos de maneira totalmente oposta: somos os melhores, em nenhum outro lugar do mundo é assim, nunca antes na história, etc... Talvez nos falte encontrar o ponto de equilibrio, onde sejamos únicos, verdadeiros, autênticos.
Bom texto pra refletir somos nós como nação, como grupos e como pessoas. Ainda muito atual. ;-)


Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei mto da tua observação... na vida não devemos nos sentir piores nem melhores, devemos ser autênticos, verdadeiros em nossas opiniões, gostos e interesses... mas claro sempre respeitando os gostos e interesses dos outros...

Felizmente a vida sempre nos dá oportunidades pra repensar, mudar, fazer diferente... e cabe a nós aproveitarmos as chances (ou não)... como este teu texto por exemplo veio de encontro a um momento meu atual, de mudanças...

Se pudéssemos voltar atrás e apagar as burradas seria bom rs, mas infelizmente temos que arcar com isso, ou seja, as perdas advindas de nossos erros... perdas de relações, boas amizades, empregos, amores, etc etc...

Mto oportuno o teu texto, obrigada por compartilhar...

Abraços!!!